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O "nosso general" é... Cristo?

O contrabaixo começa um dedilhado e o coração parece compassar igual. Entram guitarra, teclado, bateria de leve. E a voz: "pelo Senhor marchamos sim. O seu exército poderoso é. Sua glória será vista em toda a Terra"... A indiferença dos indiferentes, a essa altura, já se desfez: virou incômodo ou pura emoção. E segue: "vamos cantar o canto da vitória: GLÓRIA A DEUS!" - esse "Glória a Deus!" solto feito um grito de guerra. E a melodia descamba pra algo que enche o peito, e você se sente verdadeiramente parte de uma comunidade. Parece ligado à mesma frequência dos demais, os que dividem o salão contigo. "Vencemos a batalha! Toda arma contra nós perecerá!" (num arranjo vocal, o que faz a segunda voz solta um "pereceráááá", num estilo meio hard rock, parece chegar ao âmago do ser).


"O nosso general é Cristo! Seguimos os seus passos! Nenhum inimigo nos resistirá!", entoa forte o refrão. E a essa altura, não há no salão quem não esteja repleto de uma alegria contagiante. Uma força, um chamado à luta e, o melhor, muitos, muitos outros estão ao seu lado, marchando contigo. Sim, porque a essa altura, não há quem não cante a plenos pulmões e não marche junto. É um êxtase. E, agora, além da vida ter ganhado um sentido (ou um novo sentido); além da sensação epifânica de que (finalmente) a verdade foi descoberta. E a verdade, sabe-se agora, basta que se conheça e ela libertará. E não há no mundo quem não queira ser liberto. Não há no mundo quem não queira ser feliz. E não há quem não queira compartilhar essa felicidade, de modo que ela contagie como o coronavírus e dê sentido à existência de outras pessoas, e por isso, AGORA, devo sair às ruas proclamando a Boa Nova.

Uma pausa para contextualizarmos direitinho... Anos 70, estamos na Vila Carrão, bairro nobre, no sudeste de São Paulo (SP). Casas, prédios altos, comércio forte. E um pastor evangélico, Adhemar de Campos. Ele é praticamente o único a compor canções gospel no país. De lá até aqui foram mais de 800, dentre elas, 100 versões para músicas norte-americanas e mexicanas. Dentre elas, "Nosso General", essa canção dos dois primeiros parágrafos. Esse louvor - como são chamadas as canções cristãs entre os cristãos - é uma das versões, e faz uma convocatória para que assembleias de fieis compreendam a dimensão do amor de Deus. Toca no íntimo, no emocional, e é hit dos mais conhecidos do país. É ela tocar e aqueles loucos - porque todos parecem loucos quando a pessoa chega ali - de repente passam a ser lidos como seres incríveis, cheios de bondade e amor, cujas experiências humanas se propõem a ser anti-Establishment, "santas" (ou seja, separadas para o Criador). E foi a bondade de Deus e dessas pessoas que o trouxe até esta experiência, que você vive agora e não quer mais sair dela.

E a partir da canção, da alegria proposta, do grande Amor finalmente encontrado e do novo sentido para a vida, você se vê armado e disposto a lutar. Acontece assim entre evangélicos, acontece assim entre católicos. Daí, parte-se para a formação intelectual, afinal esse respaldo, o do estudo, sempre se transforma em lacuna quando inexistente. Então apresentam-lhe a Bíblia: para evangélicos, ela e apenas ela serve como tradução para o que há entre o céu e a Terra. Para católicos, além dela, as tradições estabelecem essa ponte. E a diáspora quase que eterna do povo de Deus lhe é apresentada, no Antigo Testamento. Mas o amor - ah, o amor é importante - está todo descrito no Novo Testamento. Por isso, alguns dos estudos bíblicos recomendam que sua leitura comece pela primeira carta de São João (ou do Apóstolo João, pois protestantes não crêem em santos). Mas o tempo todo você é alertado a estar como os escoteiros: sempre alerta, pois há perigo em quase tudo. Ou em tudo, menos na Palavra de Deus.

Se seu vizinho é macumbeiro, se seu irmão fuma maconha, se sua tia fez um aborto, se seus primos bebem cerveja e ouvem rock, se o porteiro falou um palavrão, se o motorista de ônibus mandou alguém pro inferno, se a filha da vizinha engravidou, se os amigos de seus filhos fazem sexo, se seu cunhado é gay... Tudo, absolutamente tudo isso coloca-os todos sob suspeição. Nenhum deles pode estar perto de você, é melhor que não estejam, ou podem contaminar sua alma. Basta uma brecha e você vai ficar tão sujo, mas tão sujo, que terá de lidar com possessões demoníacas e passar por descarregos e mais descarregos. Terá de ir a muitas orações profusas e repousar no Espírito Santo (uma espécie de desmaio que ocorre por sugestão, já que sempre tem alguém que "cai" primeiro, e diz-se que a pessoa está em estado de oração profunda). Terá de falar línguas (a glossolalia, em que todos passam a falar coisas incompreensíveis e que é interpretada pelos religiosos como "orar na língua dos anjos"). Terá de ser curado e liberto muitas e muitas vezes, até que essas maldições todas se desfaçam.

E você descobre, então, que o mundo é um lugar absolutamente hostil e que tudo é sobre você e sua relação com o seu Deus. Por isso, terá de ser soldado de Cristo. Alguém será seu general. No caso, o próprio Jesus. Mas como ele só está aqui em espírito, não fisicamente, caberá ao seu pastor ou padre exercer esse papel. E, agora, o que ele fala é Lei, já que o que ele fala é o próprio Jesus falando. E soldado não reclama, soldado obedece. Soldado não questiona, soldado executa. Soldado não pensa, soldado faz. Soldado não tem senso crítico, soldado age.

É por isso que é tão, tão difícil lidar com quem tem Cristo como general e não como o Deus dos pobres, dos humilhados, dos excluídos, dos oprimidos, dos detestados - como a História do próprio livro sagrado para eles mostra. Jesus não veio ao mundo cheio de pompa e poder e glória, dono de exércitos e hordes de fanáticos. Ele transformava vidas contando parábolas e atendendo às necessidades mais básicas de seu povo. Ele produzia, miraculosamente, vinho da melhor qualidade para os regabofes de casamento. Ele denunciava a hipocrisia de seu povo jogando essa hipocrisia na cara e evitando o apedrejamento de uma mulher que exercia sua sexualidade de forma livre. Ele não se macomunava com o poder constituído e era absolutamente Laico, orientando seus amigos a doar a César o que era de César e a Deus o que era de Deus. Levou as convicções ao cabo e foi condenado à pior pena de seu tempo: a humilhante morte de cruz. Mas não matou ninguém.

Certa vez, muito jovem, com dilemas sobre o exercício de minha fé católica (bastante fervorosa), procurei minha professora de Religião, na escola, para falar sobre os limites. E ela me respondeu: o fanático é aquele que é capaz de matar pelo que acredita. O convicto é o que é capaz de morrer pelo que acredita. Ou seja, o que não se deixará subjulgar. O próprio Cristo o fez. Em nenhum momento, porém, ele ordenou que se tocasse em armas.

Todos estes valores, tão claros, estão subvertidos hoje. Pastores e padres se unem a um projeto de poder. Reclamam que, se nada fizerem, não poderão exercer suas fés mais à frente - como se já tivessem sido impedidos alguma vez na História. Como se não se realizassem, anualmente, as inúmeras Marchas Para Jesus, ou como se, semanalmente, o Rincão do Meu Senhor, na Canção Nova (em Cachoeira Paulista) não se entopisse de fieis de todo o país. E como se não bastasse o dinheiro desses mesmos fieis para a manutenção de suas estruturas, agora buscam aproximação com o Poder para... Ter mais dinheiro? Bom, os casos da Igreja Renascer e da ligação de um certo senador da República com um padre famoso do Distrito Federal para financiar uma rádio - que colocou este mesmo senador na cadeia.

Cristo não precisa de soldados. Jamais pediu isso a seres humanos (e quanto às batalhas espirituais relatadas na Bíblia, nenhuma delas envolve a participação de pessoas - ao contrário, o mandamento do crente no "Não Matarás" continua válido e, este sim, tem força de Lei, portanto deve ser cumprido). Cristo não precisa de gente raivosa e espumosa para defender sua Palavra. Cristo nem precisa de você, nem de ninguém - caso você creia no que Ele diz sobre si próprio, sabe muito bem que quem tem poderes sobrenaturais como Ele, se basta. Cristo, como todos, quer amigos. E, como todos deveriam fazer, não julga seus amigos. Quer sejam macumbeiros, gays, roqueiros, prostituídos, alcoólatras, budistas, hindus, muçulmanos, ateus, agnósticos, sikhs, ninfomaníacos, nerds, certinhos. Em seus ensinamentos, foi o que Ele disse. Não faz o menor sentido ser do "Exército de Cristo", e nem abrir mão de toda a abundância da vida para encher o saco das outras pessoas, como se só você fosse feliz e os outros, não.

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