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Ele foi ali, encontrar Saramago

Eu não tenho idéia do que deve ser a biblioteca do Arrais. Sei que tem Mário Vargas Llosa, Roberto Bolaño, Mia Couto, Isabel Allende. São apenas alguns dos autores que ele indicava, lia, relia e reindicava. Na nossa última conversa, insistiu para que eu lesse Alan Pauls, recente descoberta dele. E eu indiquei o João Almino, sobre o qual ele já havia ouvido falar, especialmente de sua trilogia de Brasília, mas ainda não tinha começado a ler. E me disse que a minha birra com o Saramago tinha uma explicação simples: não era lendo o Evangelho Segundo Jesus Cristo de cara que eu iria entender, aceitar e gostar do autor que agora deve estar bebendo vinho com ele, nessa nova dimensão para onde partiu o meu amigo ranzinza.

Arrais se foi aos 64 anos, na noite deste 14 de setembro, quando assistia televisão com sua esposa em casa e teve um ataque fulminante. Nessa mesma noite, quando eu terminava o expediente e ele também, nos esbarramos no corredor da EBC, e eu, apressado, só pude cumprimentar o “Arroz”, como gostava de chamá-lo, já que a pressa me impedia de parar para mais uma prosa. E o que pautava as nossas prosas eram os livros ou discos que ele sempre tinha à mão.

Dono de um humor politicamente incorreto peculiar, que acrescentava risadas à redação nossa de cada dia de trabalho na Agência Brasil, são impagáveis as referências pernambucanas simples que ele usava, como quando queria dizer à nossa colega Mariana Jungmann que ela estava mais bonita que uma égua de charrete, por ter escolhido trabalhar bem produzida e bem adornada. Era cearense, mas eu achava que era pernambucano. A explicação veio com o comunicado interno da EBC, anunciando sua morte: formado em Jornalismo em 1976, em Recife, era lá que ele e sua família moravam desde antes da faculdade, e onde iniciou a vida profissional.

O Arrais era turrão com os textos, mas mais ainda com os fatos. Revoltava-se quando acompanhava a barbárie que nos acompanha no Jornalismo, quando tínhamos que acompanhar casos de crimes cruéis. Bastava uma piada de sacanagem para tirá-lo do mal humor e tornasse a se e a nos divertir.

Mas ele estava cansado, especialmente de ter de dar plantões, e não hesitou em aceitar o convite para trabalhar na comunicação interna da EBC, ano passado, e fazer falta na redação. Os encontros de corredor e os lanches vespertinos de sexta-feira na Agência supririam essa lacuna dos meus colegas - já que, eu mesmo, já havia deixado aquela redação e ido para a da Rádio Nacional. Não durou muito tempo, e em agosto último, ele teve que voltar. Como disse a Luciana Lima, uma pena que por tão pouco tempo...

Arrais trabalhou em vários jornais de Pernambuco, como Jornal do Comércio, Diário de Pernambuco e nas sucursais do Jornal do Brasil e do jornal O Globo. Em 1978 foi transferido para a sucursal de Brasília e depois trabalhou também na Agência Estado. Ingressou na Radiobrás em 1987 e esteve cedido por 12 anos ao Tribunal Superior Eleitoral, ao Senado Federal e à Procuradoria Geral da República, onde atuou como Coordenador de Comunicação Social.

O retorno à Radiobrás foi em 2003. Graças a Deus, porque quatro anos depois, eu teria o privilégio de conhecê-lo, quando foi a minha vez de entrar na casa – vinte anos depois dele. Adeus, amigo. Ler suas indicações será privilégio e honra.

Comentários

  1. Morillo querido,
    compartilho o sentimento de perda e a mesma admiração. Arrais sempre me surpreendeu: o sarcasmo e o mau humor do 1º contato sempre se desdobravam em ótimos comentários, boas piadas e dicas de literatura e musica do maior bom gosto.
    Vai fazer falta.
    beijos

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  2. Oi Morillo!

    Fiquei estarrecida qdo soube, através do seu twitter... estava dando uma passada como quem não quer nada na minha timeline e me deparei com um tuiti seu, que não sào muitos :p
    Engraçado como são as coisas e esses encontros casuais, que podem ser os últimos que teremos com a pessoa...
    Trombei com o Arrais no sábado, na livraria cultura. Pelo visto, estava no "território" dele... Eu estava procurando algo e fui direto na prateleira onde ele estava. Quando cheguei à prateleira ele se virou de súbito; me olhou por cima dos óculos, aquele olhar duro e penetrante que te deixa meio sem graça, pensando: "será q eu fiz algo de errado". Dois segundos depois, fiz a conexão de "onde conheço esse cara"... Sorri para ele, e ele se foi. Sem dizer nada. Nem sorrir de volta.
    Não sei se me reconheceu. Nem consegui ler nada nas entrelhinhas daquele olhar...

    Lamento por sua partida!

    ResponderEliminar
  3. bah, agora que me dei conta. tive breve contato com ele em junho, quando a rádio nacional estava concorrendo ao prêmio engenho.
    ele me ligou pra pedir informações e trocamos palavras amistosas ao telefone.
    pena. é sempre triste perder pessoas bacanas.

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